domingo, 8 de fevereiro de 2015

Ortografia também tem história

Introdução justificadora 

Hoje vou tecer uma página saudosista.  A foto ao lado, capturada de uma mesa de reuniões por um colega professor, motivou-me o texto. A toalhinha (hoje, de papel) era feita de crochê (com "ch" porque é de origem francesa a palavra) e colocada sobre o pires, para receber a xícara de café elegante que servíamos às visitas, na época em que eu era criança. Vovó tecia as toalhinhas com muito  capricho, enquanto contava histórias para nós. Momentos mágicos pelos quais toda criança deveria passar. Quem não sente saudade dos avós?  Lembranças de doces de que gostávamos, passeios que queríamos fazer e nossos pais nem sempre tinham paciência para nos acompanhar? O bolo de aniversário, ou os docinhos preferidos... Às vezes uma roupa, ou um brinquedo pelos quais nos apaixonávamos e só ousávamos pedir à avó, ou ao avô, ou a ambos. 

No meu caso, as lembranças estão atreladas também a um livro de receitas da vovó, que ela caprichosamente desenhava para deixar para as netas desenvolverem quando crescessem.  Às vezes ditava as receitas para que eu escrevesse por ela. Como sou a primogênita (sinônimo de "a mais velha"), fui a privilegiada que herdou o livro.  

Nele, e com ele,  aprendi a escrever palavras com dupla grafia: chícara e xícara, assucar e açúcar, entre outras. A explicação era divertida: chícara, com ch, duas letrinhas, porque ela vem sempre acompanhada do pires; assucar, com dois "s", porque é bem doce. Você deve estar-se perguntando: Isso pode? Respondo: em se tratando de avós, tudo pode...

Explico:  Vovó nasceu em 1899 e foi alfabetizada antes do primeiro Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa no Brasil (AOLP 1927-1931). Antes desse acordo, não havia um estudo sistemático sobre a língua do Brasil.  Usava-se mais a grafia fonética e aparentemente lógica do que a etimológica: Brazil, socêgo.  Você pode ter a prova dessa grafia, em livros editados na época e nas páginas que o jornal O Estado de S. Paulo registra em "Há cem anos..."  Estremeço hoje,  quando alguém emprega um "z" num vocábulo (onde seria um "x" ou um "s"), com a justificativa de que soa como um "z". Socorro! Não é mais assim... 

À medida que os anos passaram, Vovó atualizou sua escrita e,  por isso, as receitas com "chícara"  ficaram registradas, mas as que vieram muito depois  ganharam a moderna "xícara". O mesmo se deu com outros vocábulos. Quase todos, porque em 1943 haveria mais surpresas. A atualização para ela veio aproximadamente na minha adolescência, nos "anos dourados".   

E por que mudou a grafia desses vocábulos?  

Essa é uma história que ficará para uma próxima vez.  Só peço - por enquanto - que  reflita sobre as palavras em que  você hesita na hora de escrever. Ou procure cartas, ou livros de receitas, ou poesias que seus avós (ou bisavós, ou trisavós, porque você certamente é muito jovem) escreveram.   

Um abraço, com o desejo de que você encontre muitos desses vocábulos escritos como eram "antigamente",  pelo valor da história que vão revelar. 

Continuaremos o assunto numa outra oportunidade, pois agora vou tomar uma chícara de café sem assucar, para matar a saudade

Até mais!

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